Se houvesse um campeonato mundial de insegurança jurídica acredito que o Brasil seria o grande favorito. Embora seja difícil fazer esta comparação, os inúmeros casos de diferentes decisões judiciais sobre um mesmo tema causam perplexidade.
A frase "no Brasil até o passado é incerto" é de autoria duvidosa, alguns à atribuem ao ex-ministro da Fazenda Pedro Malan mas a jornalista Miriam Leitão afirmou ter ouvido tempos antes a mesma expressão do ex-presidente do Banco Central Gustavo Loyola.
Para os amantes de futebol talvez o caso mais emblemático de passado incerto seja o do Campeonato Brasileiro de 1987. É uma confusão tão grande que até o resumo do wikipedia parece um capítulo de debate jurídico.
Resumindo, oficialmente o Sport foi o campeão brasileiro do torneio da CBF porém o Flamengo acredita ser o verdadeiro campeão por ter vencido o campeonato paralelo organizado pelo Clube dos 13.
A polêmica foi tão grande que o Flamengo levou o caso a Suprema Corte Brasileira. Isso mesmo, a instância máxima da justiça teve que resolver essa relevante questão para a sociedade brasileira poder dormir tranquila.
Em 2018 o STF reconheceu o Sport como único campeão brasileiro de 1987, mas muito provavelmente inúmeras pessoas ainda acreditam que o Flamengo foi o verdadeiro campeão, ou que excepcionalmente houve dois campeões naquele ano.
Não é raro que casos exóticos como o do campeão brasileiro de 1987 sejam julgados pelo Supremo, principalmente quando indivíduos tentam utilizar a justiça da forma que mais lhes favorece.
Hoje presenciamos um destes debates num tópico talvez mais relevante do que um torneio de futebol. Os Presidentes da Câmara e do Senado federal, Rodrigo Maia e David Alcolumbre, discordam do seguinte trecho da Constituição Federal:
"Cada uma das Casas reunir-se-á em sessões preparatórias, a partir de 1º de fevereiro, no primeiro ano da legislatura, para a posse de seus membros e eleição das respectivas Mesas, para mandato de 2 (dois) anos, vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subseqüente. "
Há um pouco de "juridiquês" no texto, mas o que eu e muita gente entende é que os presidentes da Câmara e Senado não podem se reeleger dentro do mandato, o que é positivo por estimular a alternância de poder no Congresso Federal.
Porém, Maia e Alcolumbre num exercício bizarro de contorcionismo interpretativo afirmam que este trecho da Consituição está "errado", e assim, pediram para o Supremo avaliar se não seria possível se candidatarem à reeleição.
O julgamento ainda não terminou mas tudo indica que os Ministros do STF chancelarão o pleito e será possível que ambos se candidatem para mais dois anos como presidentes da Câmara e do Senado.
Esta questão é um retrato emblemático de inversão de papéis e prioridades, servidores públicos eleitos/custeados pela sociedade trabalhando para proteção de interesses individuais.
O que a sociedade ganha com este caso? Qual o grande benefício para o cidadão que paga impostos e banca o salários de deputados, juízes e senadores de ter Maia e Alcolumbre por mais 2 anos como presidentes do Congresso? Esta é uma pauta tão importante para a Suprema Corte avaliar com urgência?
Criamos uma cultura que independente do que se está escrito, é sempre interessante questionar se não há uma exceção, um atalho para obter benefícios que foram negados à outras pessoas em condições semelhantes.
A chancela do STF neste caso estimulará ainda mais pleitos de indivíduos que não pouparão esforços e recursos para obter a interpretação jurídica que mais lhes favorece.
O passado deve permanecer incerto no Brasil, mas não é muito difícil prever que o futuro de insegurança jurídica se perpetuará por um longo período por aqui.
*** UPDATE ***
ResponderExcluirPor 6 votos a 5 o STF barrou a tentativa de reeleição de Maia e Alcolumbre e manteve o que está escrito na Constituição. Por enquanto a palavra "vedada" ainda significa "vedada".